Há uma nova ordem natural das coisas, ou talvez devesse chamar-lhe desordem. Foi o que dei por mim a pensar enquanto limpava a cara com leite hidratante, base, pó e sombras, eye liner e rímel para aprofundar o olhar, e outros truques que nos emprestam a aisance necessária para enfrentar o mundo. Ele escovava os dentes e ambos olhávamos o outro ligeiramente de lado, como se quiséssemos passar despercebidos.
- Os meus ovos estão a acabar, tu sabes?
- Eu sei querida, penso muitas vezes nisso.
Eu também, quase disse, mas depois calei-me fomos deitar-nos. Claro que ele sabia. Há mais de quatro anos nisto, eu a querer casar e ter filhos, e ele não. Apagou a luz e ficámos os dois quietos, presos um no outro. E foi então que me disse que pensava muito no futuro, que às vezes ainda sonhava esse futuro comigo, casa, filhos e férias juntos, uma família feliz, que já estivera muito mais perto de me pedir em casamento do que eu alguma vez suspeitara, mas o medo impedira-o sempre de avançar. Em vez disso, marcava o território qual macho indeciso, e eu, muito parva, em vez de acender a luz e lhe perguntar, mas por que raio é que nunca o fizeste, deixei-me estar quieta no escuro e respondi: - Ainda bem, fico muito contente, afinal não estava maluca estes anos todos, afinal tu sempre gostaste de mim. E depois adormecemos mergulhados naquela paz triste e serena, própria de quem perde a guerra porque não lhe apetece lutar a última batalha. Nunca sabemos quando deixamos de amar alguém, o amor nunca morre, é como uma velha árvore que se vai desfazendo; os troncos ficam demasiado pesados e quebram, as folhas estalam e caem, é um processo muito lento, sobretudo quando não queremos deixar de amar. Durante demasiado tempo eu pusera os meus ovos todos naquele cesto. Por obstinação, infantilidade, ou as duas coisas, aí projectei a minha ideia de futuro: os ovos do sonho, da esperança, da fertilidade. Mas o cesto estava vazio. E, do outro lado da realidade, o medo, ainda e sempre esse monstro cinzento igual à morte, epnas sem a ceifa erguida, que o impedira de se atirarà vida e de ser feliz. Dormi pouco, sobressaltada por imagens do meu futuro impossível. Era como se já o tivesse vivido sem nunca ter passado sem ele. Crianças de cabelos aos caracóis com o riso igual ao meu, uma vida em comum, semelhante à dos comuns mortais da casa ao lado, da rua de cima, da cidade vizinha, quem sabe até de outros planetas, porque o amor é universal e a vontade de criar laços e de ter filhos atravessa todos os seres vivos. Era muito cedo quando se levantou e me trouxe uma chávena de café antes de sair. Quis perguntar-lhe porquê, mas já não valia a pena pedir, explicar, insistir, chorar e rir, todos os verbos estavam gastos. E no entanto, todos os gestos eram, ainda e sempre, tão belos. Ele a pentear-me a franja para o lado com cuidado, a olhar para mim como se tivéssemos 10 anos e eu fosse a sua primeira namorada, e depois a ir-se embora devagar, como quem nunca quer partir, enfrentando o caos que governa o mundo.
Fechei os olhos e mergulhei no sono, embalada por uma paz até então desconhecida. Quando acordei vi um embrulho enorme em cima da mesa de cabeceira. Era o cesto dos ovos. Estavam todos lá dentro, muito arrumados, de várias cores e tamanhos. Peguei no cesto e fui-me embora. Finalmente estava livre. Agora já podia ir até ao fim do mundo.
in, Crónica, Revista Máxima, por Margarida Rebelo Pinto
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